Só há um destino para a mente dividida desta heroína. Tragada ao terror de enevoada Silent Hill, viver é a única saída.
Girl Power – n. 23
Por Alessandro Chmiel
Dedicado a Andressa Travassos, melhor amiga, irmã emprestada, diva ivolente, moça do café sem açúcar, das cartas do UNO/IVO,
parceira de séries, bartender, promoter (que lista longa, não?); a Agente Perpétua da CIA mais unida do mundo – dentro ou fora da Letras. Tu és a culpada por eu ter iniciado minha “carreira” dentro de Silent Hill, então esta GP é de presente para ti, criatura semixenite.
Obs.: Sem spoilers que lhe impeçam de tremer de medo em horas e mais horas de jogo.
Juro para vocês: não jogo Silent Hill sozinho nem que me paguem. Faço questão de esperar dias pela companhia da minha amiga Julia Soardi para ousar ligar o console ou ativar o game no PC. De qualquer maneira, acabamos, os dois – eu na posse do controle, ela me assistindo e colaborando com sugestões de ação –, sugados a esse mundo que faz de Tártaro um passeio nos Campos Elíseos.
A nossa Girl Power de abril atende pelo nome de Heather Mason, a primeira mulher protagonista dessa saga pavorosamente encantadora. Jovem, bonita, reservada – misteriosa. E é cercada de suspense que sua aventura tem início em Silent Hill 3 (Playstation 2/PC, 2003). Na trama, Heather tem um sonho estranho com um parque de diversões infestado de monstros e acaba sendo atropelada por um carrinho de montanha-russa. Ela desperta em uma lanchonete de um shopping, faz uma ligação para seu pai e continua perambulando pelo estabelecimento, até notar que um homem a segue. Não querendo que ninguém a perturbe, Heather foge pela janela do banheiro feminino e vai parar no acesso privativo a funcionários. Ao entrar em uma loja de roupas fechada, ela se apavora com um monstro de quase três metros de altura sobre um corpo ensanguentado. Ela encontra uma arma no chão e dispara, até derrotá-lo. Mas… um monstro? Para uma menina grandinha, isso não é real. Contudo, quando se mexe com Silent Hill, as noções de realidade e sonho são distorcidas e inevitáveis.
Paremos um pouco para definir o que exatamente o nome Silent Hill representa. Sendo antigamente uma pacata cidade pelo nordeste dos Estados Unidos (sua localização “real” é incerta), houve um dia em que todas as pessoas da cidade simplesmente desapareceram, como se nunca tivessem existido. Durante os primeiros dois títulos da série de jogos, podemos perceber que Silent Hill é plenamente flexível em sua fisionomia e atmosfera, dependendo de quem vai parar na cidade e de quem as levou até lá. No primeiro título, descobre-se que uma menina, Alessa, fora vítima de um ritual da Ordem (um grupo de fiéis bizarros, como uma sátira de fanáticos religiosos) com o intuito de trazer “Deus” para purificar o mundo. Alessa, envolta em dor pelo fogo que a consumia durante o ritual impuro, exprimiu seu ódio infantil e dividiu sua alma, e assim nasceu Cheryl, a filha adotiva do protagonista Harry. Foi quando o tal Harry (ingênuo quanto ao passado da menina) bateu o carro na cidade de Silent Hill e perdeu a filha é que tudo começou (semelhante ao filme baseado na série de 2006). Os criadores do jogo certa vez disseram que a série mexe com um tipo de “física” (sinto em dizer que não lembro onde li e não sei nada sobre física!) onde seria possível que a mente produzisse coisas externas a partir de sentimentos fortes, como amor, vingança e ódio – o caso de Alessa no primeiro jogo (porém não tornando ela alguém “culpado” pelo que está acontecendo, se pararmos para analisar). A cada jogo, uma charada é posta sob os jogadores: quem é o culpado? Estarei eu na pele do vilão? Por que vejo essas coisas sem sentido indo e vindo sem parar, o que isso tem a ver comigo? E a mais importante: como eu saio dessa droga de Silent Hill?!
Ao perambular por Silent Hill, quase nada acontece. Estou falando sério: o golpe de mestre dos criadores é fazer com que o jogador esteja constantemente esperando por alguma coisa. Tudo faz parte do terror psicológico, o que está lá, mas não está (será?). Passando por longos corredores, você espera um cachorro em carne viva correr no seu encalço enquanto ouve um grito vindo não se sabe de onde; entrando em um consultório médico, você vê corpos e espera que um deles se levante; o rádio começa a sinalizar uma ameaça ao redor, mas em meio à névoa da cidade você não faz ideia de onde ela vem, e sai correndo para qualquer lugar! O jogo mexe com a nossa mente e está infestado de simbolismos e mitologia, fazendo de coelhinhos rosados de pelúcia os seres mais odiáveis (e de coelhos perigosos os Xenites entendem bem, não é Gabrielle?). Os ângulos da câmera contribuem para o clima de filme de horror. A música é muitíssimo bem bolada e aumenta de intensidade nas horas certas (volta e meio eu fico cantarolando junto da Julia a canção da Xuxa, Mundo da Imaginação, só para me acalmar. Ei, não me culpe!). Existem salas onde nada se encontra a não ser uma cadeira de rodas – esteja ela parada, andando sozinha, ou virada com uma das rodas ainda em movimento. E o sangue… pelos deuses, está em todo o lugar! São portas e mais portas que levam a lugares impossíveis, escadas quilométricas, escuridão macabra, jogos de luz que variam do seu posicionamento… A lista não tem fim! Há momentos em que tudo que você pensa em fazer é desligar o console e ouvir uma música feliz, só para esquecer. E nem ouse refletir sobre o jogo antes de dormir – outro lance de gênio dos criadores: o jogo fica em você. E após Silent Hill, suas visões acerca do que se vê ao seu redor são mais sombrias, acredite.
Voltando ao drama de SH3 após esse imenso parênteses: ao que tudo indica, Heather é perseguida por este homem, Douglas Cartland, e uma mulher chamada Claudia Wolf, que lhe dá avisos sem muito esclarecimento acerca do que está por vir, e da importância que Heather tem na salvação da humanidade. “Não negue quem você é de verdade”, Claudia diz para Heather.
Foi nesse ponto achei que Heather se assemelhava a Xena. Não negar quem se é. Xena jamais negou sua alma guerreira, seu instinto assassino, seu lugar em um campo de batalha. Heather, por sua vez, é uma típica adolescente, confusa, intolerante e irritadiça, entremeada nos horrores deste mundo obscuro que vem e vai. E ela só quer ser ela mesma. Minha classificação final seria: Heather parece uma Gabrielle misteriosa que, quando desvendada, mostra seus potenciais de Xena.
Contudo, no decorrer da história (e em histórias futuras, como em Silent Hill: Shattered Memories – 2010) a menina tem um plano de fundo bastante perturbado, principalmente em relação ao seu passado. Neste ponto, Xena é bem mais preparada psicologicamente na hora de lidar com os obstáculos. Nesse caso, ainda assim, estaríamos comparando duas mulheres com passados distintos e grande diferença de idade e de experiências. Uma curiosidade com XWP são algumas cartas do tarô que aparecem tanto no jogo quanto em 03×12 – The Bitter Suite. E a carta The Fool (a Callisto colorida no episódio) tem papel significativo na trama de SH3.
Quando o jogo começou, juro que pensei: ah, não, me deram uma bonequinha pra cuidar – em Silent Hill! Continuei não gostando “dessa tal de Ré-dã”, vozinha petulante e cheia de não-me-toques. Gostei menos ainda quando com apenas uma pancada ela caiu no chão, levou uns oito segundos para levantar e estava quase morta! Apenas primeiras impressões, fato. Heather conta com o auxílio de um colete à prova de balas encontrado pelo caminho, que atrasa seus movimentos mas a protege de danos maiores, e vale do jogador testar suas habilidades de combate. Estiletes, barras de metal, pistola, espingarda, até uma katana está disponível para Heather decepar as criaturas do inferno (se bem que eu acho que o demônio evitaria passar por Silent Hill, pois classificar a cidade como infernal é chamar a Callisto de “espevitada”). Mesmo desarmada, Heather surpreende em sua autenticidade: ela possui um senso de humor que beira ao grotesco, dependendo sobre o que ela está falando: um monstro falecido, um vaso sanitário entupido de sangue, uma obra de arte etc. Talvez você não ria ao jogar por estar tão envolvido no jogo, mas eu tento desesperadamente compreender a piada para sorrir, nem que seja forçado, em meio ao pandemônio. Aplaudi quando Heather derrotou uma monstrenga, eu gritei “morre, bitch!!” e a nossa Girl Power saiu chutando a cabeça da mocreia, P da vida e ofegante. Sensacional! Outro fator de apreciação é que Heather é mais realista do que as heroínas de games em geral: ela possui sinais no rosto, sem seios enormes, e suas ações e reações soam mais verossímeis, dando mais credibilidade ao jogo.
Espero que o artigo não tenha ficado tão sem sentido quanto a série de jogos. Sempre tive medo de encarar Silent Hill, e continuo tendo. É quase como uma Bitch Power: algo que eu adoro odiar. Mas é sempre um alívio quando o jogo termina. Ou não, pois os pensamentos que vão além da nossa existência e sabedoria persistem. A vida não é um jogo de terror (a sua é? Dá um abraço aqui, poxa!), mas esse nível de desafio e das coisas que todos os dias buscamos compreender faz parte da vida. São personagens como Heather e Xena, heroínas de atitude, que não viram vítimas de si mesmas e lutam pelo que acreditam e pelas pessoas que amam, que nos inspiram. Morreremos sem entender todos os mistérios do mundo, mas partiremos felizes se tivermos sentido, ainda que um pouco, o amor dentro da gente e no próximo, e lutado por isso.
Em maio, atendendo a antigos pedidos e homenageando as supermães por esse mundo, uma clássica Girl Power para exterminar as ameaças contra seu filho – e contra toda a humanidade. Agradeço aos comentários da edição passada e renovo os pedidos, pois a gente gosta e muito do que vocês sugerem para nossos artigos serem sempre melhores. Afinal, trabalho para Xenites tem que ser de qualidade! Boa Páscoa, povo (sem coelhinhos rosadinhos, por favor)!
Fontes (com spoilers):
Sobre Heather – http://silenthill.wikia.com/wiki/Heather_Mason
Sobre a trama de Silent Hill 3 – http://silenthill.wikia.com/wiki/Silent_Hill_3